10 julho, 2011

O VALOR DA CARTA DE AMOR



Uma carta de amor escrita em 1820, há exatos 191 anos, foi vendida por 86 mil libras (110 mil euros) no mês passado, em Londres. O autor foi o poeta inglês John Keats, o último e maior nome da poesia romântica inglesa, e a carta era destinada ao grande amor de sua vida, a namorada Fanny Brawne. Castigado pela tuberculose, ele não podia abraçá-la e escreveu no verso do papel: "É melhor não vir hoje." O peso dramático da situação o levou a se autodefinir no texto como "um pobre prisioneiro" que não podia "cantar em uma jaula". Ele morreu um ano depois, aos 25 anos, em 23 de fevereiro de 1821, e levou no caixão as cartas que Fanny Brawne lhe havia enviado durante o tempo em que se amaram.

Tantos anos depois, o valor alcançado pela carta é impressionante e revela significados que vão muito além da nossa capacidade de compreender os contrastes entre realidade e fantasia, arte e mercado, emoção e tecnologia. O amor é mesmo um tema eterno, uma espécie de identidade humana que atravessa gerações e se reinventa a cada revolução de costumes. Seja no tempo de John Keats, seja na favela ou no condomínio de luxo, o amor continua a arrebatar corações e nem a mais dura das almas é capaz de sair ilesa. Por um desses caprichos do destino, o certo é que os avanços tecnológicos do mundo moderno não tiraram do homem e da mulher a capacidade de suar frio e tremer na base na hora em que bate a química dos olhares e dos corações pulsando no mesmo ritmo.

E foi justamente um capricho do destino que me levou a reencontrar numa sexta-feira de março um casal de amigos num restaurante. Convidado, sentei-me à mesa e começamos a contar as novidades. Impressionante a atração que tinham um pelo outro. Amavam-se com o olhar, com o sorriso, com a respiração. Recordavam Ingrid Bergman e Hamphrey Bogart naqueles momentos emocionantes de "Casablanca" em que os personagens pareciam se consumir com uma simples troca de olhar. Fiz essa observação, dei-lhes os parabéns por continuarem apaixonados e a conversa rolou até altas horas.

Mas, no amor, nem sempre tudo são flores. Há um ano, exatamente em abril do ano passado, ela anunciou que precisariam ficar separados por quatro meses por conta de uma viagem de estudos a Moscou. Sem poder acompanhá-la, por causa de compromissos de trabalho, ele desabou emocionalmente e o seu desespero foi imenso. Teve muito medo de perdê-la e ela jamais voltar da viagem. Imaginava a vida sem ela e isso era uma tortura que o dilacerava por dentro e por fora.

Eu o vi chorar naqueles dias. Triste, desolado, ele perdeu a alegria de viver e a capacidade de sorrir. Teve dificuldades imensas para acordar de manhã, trabalhar, estudar, comer, sair de casa. Nas raras vezes em que saía, andava convertido em uma sombra.

Perguntei por que ele não se distraía com outras mulheres durante a ausência da namorada e ele respondeu: "Não adianta. Ela é única e, sendo única, é ao mesmo tempo todas as mulheres que eu gostaria de ter." E isto não significava voto de fidelidade. Ele simplesmente não via outra mulher.

Abril e maio foram especialmente difíceis. "Abril é o mais cruel dos meses", ele dizia, citando o famoso verso da obra "A Terra Desolada" do poeta T.S. Eliot. Estivesse em casa ou no carro, sua rotina era ouvir "Misundesrstood", uma canção de Robbie Williams que eles adotaram como trilha sonora daquela espécie de filme de amor.

Em 2 de junho, pela primeira vez ele recebeu um telefonema dela. Conversaram pouco, um tanto porque ele não conseguiu vencer as lágrimas, outro tanto porque ela se surpreendeu com o estado dele e disse para ele não sofrer. Também pela primeira vez, a esperança se instalou no coração dele. "Se ela não tivesse a intenção de voltar, não teria nem ao menos ligado", ele pensou, mais apaixonado do que nunca.

Para exorcizar a travessia do tempo, ele começou a escrever um diário. No dia 15 de julho, às 10 horas da manhã, registrou: "Muito triste, muito triste, tristíssimo. Aquela vontade de chorar contida pelo nó na garganta e que eu gostaria de fazer explodir em prantos, mas que fica contida e isso é muito pior. Não sei o que fazer da vida. Sem você e sem saber quando vou ter o seu beijo, o seu abraço, o seu calor, tudo é tão deserto e vazio."

A espera foi lenta, dia após dia, período em que ele sobreviveu recorrendo à memória dos tempos felizes que viveram juntos e nos quais se amaram como se fossem Romeu e Julieta.

Um dia, para o seu delírio, ela voltou no período previsto, final de agosto. O reencontro foi digno de um "love story" daqueles de arrebentar corações. Os dois jamais esquecerão o instante em que se reviram no setor de desembarque do aeroporto. Durante o abraço ele rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria, convicto de que o retorno da mulher da sua vida era um verdadeiro milagre.

Depois que ele relatou o sofrimento daqueles dias de angústia e solidão, ela lamentou: "Eu não merecia que você me esperasse." E era como se ela quisesse dizer que não se achava merecedora de tanto amor. Ele, voltando a sorrir pela primeira vez depois de muito tempo, sentenciou: "Eu te amo tanto que merecia ter você de volta."

Foi como se ele renascesse. Voltou a sorrir e acreditar na possibilidade de ser feliz. Ambos sempre acharam que se amaram em outros tempos, quando foram separados pelo destino, e se reencontraram nesta vida para completar o círculo da existência interrompida.

Emocionado com a história e o final feliz, disse-lhes que o amor que os unia me fazia recordar John Keats e Fanny Brawne. Ele aproveitou a deixa e falou, concentrado nos olhos dela: "Eu sou o poeta e você é a minha musa."

Naquele instante, convencido de que estava sobrando, eu me retirei sem alarde. Na saída, voltei-me e eles estavam na mesma posição. Uma amiga comentou comigo: "Estão assim desde que ela chegou da viagem. Amam-se como ninguém jamais amou na história das paixões humanas. Nunca vi nada igual. Romeu e Julieta são fichinhas se comparados a eles."
 
De fato, era como se ignorassem tudo ao redor. Eu diria que naquele instante nem um terremoto os tiraria daquele transe na mesa do restaurante. Não duvido que seriam capazes de se converter em estátuas e ficar eternamente paralisados um diante do outro.

Parecia o reencontro de John Keats e Fanny Brawne quase duzentos anos depois daquela carta de amor.

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