O   amor e o ensaio têm em comum o caráter de ser uma tentativa, a  articulação de um entendimento que deve sempre rever a si mesmo, a  aproximação ciente de que o movimento é vital e não final, a recusa ao  dogma da perfeição e ao mesmo tempo a crença de que sempre há o que  melhorar. Escrever um bom ensaio sobre o amor, portanto, parece fácil,  mas não é, já que tatear sobre o intangível leva aos abismos entre as  palavras. “O amor é avesso a qualquer enquadramento, refratário às  ideologias”, escreve o francês Pascal Bruckner em O Paradoxo Amoroso  (editora Difel), e seu livro é bom justamente por não transformar o  amor numa ideologia, numa utopia, e assim defendê-lo como poucos.  Barthes que me desculpe, mas os fragmentos do discurso amoroso de  Bruckner são de uma grandeza que raramente se vê nos ensaios sobre o  tema.
O  que ele chama de “paradoxo”? O fato de que o amor nasce sempre sob o  signo do entusiasmo, da entrega febril, e depois vai se convertendo numa  rotina tediosa, sem aventura, repleta de picuinhas e injustiças. O  romance da libertação a dois gradualmente passa a ser o drama da prisão  partilhada. E dão greve ao prazer, cometendo uma deslealdade antes mesmo  de passar a uma traição concreta. Bruckner cita a passagem de Proust  numa carta a um amigo, para o qual o grande ficcionista vaticina o  futuro “desses homens fracassados a ponto de viver vinte anos ao lado de  um ser que os engana sem que eles percebam, que os odeia sem que eles  saibam, que os rouba sem se confessar, tão cegos sobre os defeitos dos  filhos quanto sobre os vícios de suas mulheres”. O amor nasce como luz,  mas logo os amantes se veem cegos.
Bruckner  está particularmente preocupado com o amor na atualidade, em que não é a  repressão que sufoca, mas a liberdade, ou melhor, o que o  individualismo cínico de hoje entende por liberdade. “Tanto mais que a  emancipação, sobretudo para as mulheres (…), multiplicou o peso de novas  obrigações. As relações íntimas são calcadas nas do trabalho: o retorno  sobre o investimento deve ser maximizado. (…) Sonho com uma relação  humana que jamais extravase: você me agrada, ficamos juntos; você me  cansa, eu o dispenso. Experimentamos o outro como um produto.” Essa não é  uma abordagem muito diferente da de outro livro recém-publicado no  Brasil, O Amor nos Tempos do Capitalismo, de Eva Illouz, cujo título  sugere um tratado marxistoide que não é seu conteúdo. “A internet  estrutura a busca do parceiro como um mercado”, nota a autora, que  mostra como os discursos da psicoterapia e do feminismo se somaram a  isso.
Illouz  também vê um paradoxo, este no fulcro da cultura consumista: “Ao mesmo  tempo que o discurso do individualismo triunfal e autoconfiante nunca  foi tão disseminado e hegemônico, a demanda de expressar e praticar o  próprio sofrimento, seja em grupos de apoio, seja em programas de  entrevistas, na terapia, nos tribunais ou nos relacionamentos íntimos,  nunca foi tão estrídula”. A indústria da autoajuda e dos antidepressivos  induz à expectativa de que os problemas sejam resolvidos como “fast  food”, como um objeto de consumo  que sacia meus desejos, na verdade insaciáveis em sua rede de  dependência; o desejo novo, afinal, tem como trunfo parecer mais  promissor, e no entanto as decepções se multiplicam à mesma escala. Como  diz Gley P. Costa na revista IDE 52 da Sociedade Brasileira de  Psicanálise, sob o tema “Amores”, não se pode pensar no amor verdadeiro  “sem disposição para o autossacrifício em prol do parceiro”. E  autossacrifício é tudo que nossa era desencoraja.
Voltando  a Bruckner, que diz tudo isso e mais um pouco, ao criticar o egoísmo  defendido por seriados como Sex and the City: “O amor é uma aventura de  que não queremos nos privar, mas com a condição de que ela não nos prive  de nenhuma outra”. Seduzir se torna uma caça a troféus, ao exercício da  vaidade – como quando alguém numa relação estável diz que “só não quero  saber” de eventuais casos de sua parceira, na verdade querendo dizer  que quer ter o direito de fazer o que quiser desde que consiga não  magoar o outro. “Há uma maldade nova em nossos amores: a adesão a mim  mesmo me autoriza a apunhalar o outro pelas costas”. Trata-se o outro  com valores utilitaristas: se não serve mais, será descartado; a fidelidade  se torna um esforço que termina deixando um com raiva do outro. O pior,  diz Bruckner, é que o casal se mostra indigno da paixão que o fez  começar e, assim, deixa a monotonia vencer.
Bruckner  não acredita então no que Ovídio, em sua Arte de Amar (livro que também  acaba de ser reeditado: Amores & Arte de Amar, editora Penguin  Companhia), chama de “amores sólidos”, livres da indulgência mútua?  Muito ao contrário. Ele cita outro clássico, John Milton, “Um bom casamento  é uma conversa variada e feliz”, e também lembra a frase de Borges, de  que o amor é amizade e sexualidade – às quais se poderia acrescentar a  ternura, o sentimento de que o ser amado mexe muito mais conosco do que  um simples amigo atraente. É um equilíbrio sempre móvel entre segurança e  aventura, a não ser vencido pela desconfiança ou egoísmo; não faz  sentido ferir tanto quem amamos, cobrando perfeição como se o menor  desapontamento fosse justificativa para magoá-lo, para trocar uma bela  história por um laço superficial. O amor duradouro é uma conversa  contínua, uma troca de duas vozes sempre redescobrindo a si mesmas. É um  ensaio, não um contrato. 
Daniel Piza. A partir do Estadão. 



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