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Uma  carta de amor escrita em 1820, há exatos 191 anos, foi vendida por 86  mil libras (110 mil euros) no mês passado, em Londres. O autor foi o  poeta inglês John Keats, o último e maior nome da poesia romântica  inglesa, e a carta era destinada ao grande amor de sua vida, a namorada  Fanny Brawne. Castigado pela tuberculose, ele não podia abraçá-la e  escreveu no verso do papel: "É melhor não vir hoje." O peso dramático da  situação o levou a se autodefinir no texto como "um pobre prisioneiro"  que não podia "cantar em uma jaula". Ele morreu um ano depois, aos 25  anos, em 23 de fevereiro de 1821, e levou no caixão as cartas que Fanny  Brawne lhe havia enviado durante o tempo em que se amaram.
Tantos  anos depois, o valor alcançado pela carta é impressionante e revela  significados que vão muito além da nossa capacidade de compreender os  contrastes entre realidade e fantasia, arte e mercado, emoção e  tecnologia. O amor é mesmo um tema eterno, uma espécie de identidade  humana que atravessa gerações e se reinventa a cada revolução de  costumes. Seja no tempo de John Keats, seja na favela ou no condomínio  de luxo, o amor continua a arrebatar corações e nem a mais dura das  almas é capaz de sair ilesa. Por um desses caprichos do destino, o certo  é que os avanços tecnológicos do mundo moderno não tiraram do homem e  da mulher a capacidade de suar frio e tremer na base na hora em que bate  a química dos olhares e dos corações pulsando no mesmo ritmo. 
E  foi justamente um capricho do destino que me levou a reencontrar numa  sexta-feira de março um casal de amigos num restaurante. Convidado,  sentei-me à mesa e começamos a contar as novidades. Impressionante a  atração que tinham um pelo outro. Amavam-se com o olhar, com o sorriso,  com a respiração. Recordavam Ingrid Bergman e Hamphrey Bogart naqueles  momentos emocionantes de "Casablanca" em que os personagens pareciam se  consumir com uma simples troca de olhar. Fiz essa observação, dei-lhes  os parabéns por continuarem apaixonados e a conversa rolou até altas  horas. 
Mas,  no amor, nem sempre tudo são flores. Há um ano, exatamente em abril do  ano passado, ela anunciou que precisariam ficar separados por quatro  meses por conta de uma viagem de estudos a Moscou. Sem poder  acompanhá-la, por causa de compromissos de trabalho, ele desabou  emocionalmente e o seu desespero foi imenso. Teve muito medo de perdê-la  e ela jamais voltar da viagem. Imaginava a vida sem ela e isso era uma  tortura que o dilacerava por dentro e por fora. 
Eu  o vi chorar naqueles dias. Triste, desolado, ele perdeu a alegria de  viver e a capacidade de sorrir. Teve dificuldades imensas para acordar  de manhã, trabalhar, estudar, comer, sair de casa. Nas raras vezes em  que saía, andava convertido em uma sombra. 
Perguntei  por que ele não se distraía com outras mulheres durante a ausência da  namorada e ele respondeu: "Não adianta. Ela é única e, sendo única, é ao  mesmo tempo todas as mulheres que eu gostaria de ter." E isto não  significava voto de fidelidade. Ele simplesmente não via outra mulher. 
Abril  e maio foram especialmente difíceis. "Abril é o mais cruel dos meses",  ele dizia, citando o famoso verso da obra "A Terra Desolada" do poeta  T.S. Eliot. Estivesse em casa ou no carro, sua rotina era ouvir  "Misundesrstood", uma canção de Robbie Williams que eles adotaram como  trilha sonora daquela espécie de filme de amor. 
Em  2 de junho, pela primeira vez ele recebeu um telefonema dela.  Conversaram pouco, um tanto porque ele não conseguiu vencer as lágrimas,  outro tanto porque ela se surpreendeu com o estado dele e disse para  ele não sofrer. Também pela primeira vez, a esperança se instalou no  coração dele. "Se ela não tivesse a intenção de voltar, não teria nem ao  menos ligado", ele pensou, mais apaixonado do que nunca. 
Para  exorcizar a travessia do tempo, ele começou a escrever um diário. No  dia 15 de julho, às 10 horas da manhã, registrou: "Muito triste, muito  triste, tristíssimo. Aquela vontade de chorar contida pelo nó na  garganta e que eu gostaria de fazer explodir em prantos, mas que fica  contida e isso é muito pior. Não sei o que fazer da vida. Sem você e sem  saber quando vou ter o seu beijo, o seu abraço, o seu calor, tudo é tão  deserto e vazio." 
A  espera foi lenta, dia após dia, período em que ele sobreviveu  recorrendo à memória dos tempos felizes que viveram juntos e nos quais  se amaram como se fossem Romeu e Julieta. 
Um  dia, para o seu delírio, ela voltou no período previsto, final de  agosto. O reencontro foi digno de um "love story" daqueles de arrebentar  corações. Os dois jamais esquecerão o instante em que se reviram no  setor de desembarque do aeroporto. Durante o abraço ele rezou um Pai  Nosso e uma Ave Maria, convicto de que o retorno da mulher da sua vida  era um verdadeiro milagre. 
Depois  que ele relatou o sofrimento daqueles dias de angústia e solidão, ela  lamentou: "Eu não merecia que você me esperasse." E era como se ela  quisesse dizer que não se achava merecedora de tanto amor. Ele, voltando  a sorrir pela primeira vez depois de muito tempo, sentenciou: "Eu te  amo tanto que merecia ter você de volta." 
Foi  como se ele renascesse. Voltou a sorrir e acreditar na possibilidade de  ser feliz. Ambos sempre acharam que se amaram em outros tempos, quando  foram separados pelo destino, e se reencontraram nesta vida para  completar o círculo da existência interrompida. 
Emocionado  com a história e o final feliz, disse-lhes que o amor que os unia me  fazia recordar John Keats e Fanny Brawne. Ele aproveitou a deixa e  falou, concentrado nos olhos dela: "Eu sou o poeta e você é a minha  musa." 
Naquele instante, convencido de que estava sobrando, eu me retirei sem alarde. Na saída, voltei-me e eles estavam na mesma posição. Uma amiga comentou comigo: "Estão assim desde que ela chegou da viagem. Amam-se como ninguém jamais amou na história das paixões humanas. Nunca vi nada igual. Romeu e Julieta são fichinhas se comparados a eles."
De  fato, era como se ignorassem tudo ao redor. Eu diria que naquele  instante nem um terremoto os tiraria daquele transe na mesa do  restaurante. Não duvido que seriam capazes de se converter em estátuas e  ficar eternamente paralisados um diante do outro. 
Parecia o reencontro de John Keats e Fanny Brawne quase duzentos anos depois daquela carta de amor.



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